segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Um pontinho no nariz

Rusbrock está enterrado há cinco anos; é desenterrado; seu corpo está intacto e puro (pudera! senão não haveria história); mas" havia apenas um pontinho no nariz que tinha um leve traço de decomposição". Sobre a figura perfeita e quase embalsamada do outro (que tanto me fascina), percebo de repente um ponto de decomposição. É um ponto mínimo: um gesto, uma palavra, um objeto, uma roupa, alguma coisa insólita que surge (que aponta) de uma região de que eu nunca havia suspeitado antes, e devolve bruscamente o objeto amado a um mundo medíocre. Seria o outro vulgar, ele cuja elegância e originalidade eu incensava com devoção? Ei-lo que faz um gesto através do qual se revela nele uma outra raça. Fico alarmado: ouço um contra-ritmo: algo como uma síncope na linda frase do ser amado, o ruído de um rasgo no invólucro liso da imagem. (Como a galinha do jesuíta Kircher, que é tirada da hipnose com um tapinha, estou provisoriamente desfascinado, não sem dor.)

Trecho de FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO de Roland Barthes

Referência a Dostoievski: morte do starets Zózimo: o odor deletério do cadáver (Irmãos Karamazov, II VII, 1)

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